A
sociedade brasileira está à espera do julgamento da Ação Declaratória de
Constitucionalidade nº 30, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, em que se afirma a plena compatibilidade da Lei da Ficha
Limpa (Lei Complementar n° 135/2010) com os princípios afirmados pela
Constituição Cidadã. No centro do debate está a resposta a uma indagação
primária: inelegibilidade é pena criminal ou condição para o registro da
candidatura?
A
resposta a essa pergunta conduz à solução dos dois principais impasses a serem
finalmente resolvidos pelo Supremo Tribunal Federal. Um é relativo à
aplicabilidade do princípio da presunção de inocência; outro se refere à
incidência do princípio da irretroatividade da lei penal.
Ambos
os princípios a que acabo de me referir são inerentes ao Direito Penal. O saber
jurídico possui muitos campos (Administrativo, Ambiental, Penal, Trabalhista,
Civil, Eleitoral etc.), cada um dos quais regido por uma principiologia
própria. É especialmente no campo dos princípios que as disciplinas jurídicas
se distinguem.
Enquanto
no Direito Penal uma sentença só pode ser executada quando se esgotam os
recursos, no Direito Processual Civil, por exemplo, é comum a execução
provisória dos julgados (art. 520 do CPC). Já em matéria eleitoral, a regra é a
execução imediata das decisões (art. 257 do CE). Então, o que de fato é uma
inelegibilidade? Qual é a sua natureza jurídica?
Os
que afirmam ser a inelegibilidade uma sanção, se apegam a seus aspectos
exteriores. Consideram que o fato de ela impedir o acesso de alguém ao registro
válido da candidatura constitui uma punição, uma reprovação de uma conduta
baseada num juízo de perfil condenatório.
Não
é isso, todavia, o que ocorre. Inelegibilidade não é uma sanção, é uma condição
jurídica. Enquanto as sanções implicam em limitação ao exercício de direitos
preexistentes, as condições constituem requisitos para o acesso a novos
direitos.
Segundo
o art. 121 do Código Civil, “Considera-se condição a cláusula que, derivando
exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a
evento futuro e incerto”. A condição é, assim, um requisito para o exercício de
um direito. Em muitas situações, as normas permitem que se cobre o
preenchimento de certas exigências para que um direito possa ser exercido. As
condições permitem verificar se o pretendente possui as qualidades necessárias
ao alcance do direito.
Isso
acontece em muitos campos. Se alguém pretende vender uma casa e aceita receber
o valor em parcelas, pode estipular que só negociará com quem se predispuser a
adiantar certo montante. Trata-se do estabelecimento de uma condição. Se alguém
oferece uma vaga de emprego, pode exigir do pretendente prova de habilitação
técnica.
Em
matéria eleitoral, as condições aparecem como características que os
postulantes devem ostentar como requisito para a obtenção do registro da sua
candidatura. Nesse contexto, as inelegibilidades aparecem como condições
negativas cujo preenchimento impede alguém de se ver registrado candidato pela
Justiça Eleitoral.
A
Constituição foi emendada em 1994 para determinar ao legislador que editasse
lei complementar fixando inelegibilidades que levassem em conta a “vida
pregressa” do candidato. Como o Congresso não adotou essa providência, mantendo
inalterada a Lei de Inelegibilidades (publicada em 1990), a sociedade lançou
mão do instrumento da iniciativa popular de projeto de lei (art. 14, III, da
CF) para reclamar a adoção da medida legislativa negligenciada.
A
Lei da Ficha Limpa instituiu novas condições para as candidaturas. Por meio
dessas novas cláusulas, se estabeleceu o novo perfil que a sociedade espera dos
candidatos.
Quando
se afirma que alguém já condenado por um tribunal (órgão colegiado) por
narcotráfico, pedofilia, homicídio ou corrupção não pode lançar-se candidato,
não se leva em conta sua eventual culpa pelo delito que lhe é atribuído, mas
tão somente a existência de um dado objetivo: a condenação.
Segundo
as normas brasileiras, os analfabetos e, em certas condições, os cônjuges de
mandatários são inelegíveis. É uma boa demonstração de que a inelegibilidade
não possui caráter punitivo.
Além
desses, a Lei da Ficha Limpa quer inelegíveis os que renunciam a mandatos para
escapar da aplicação de sanções de natureza política, como nos casos de quebra
do decoro parlamentar. A sociedade, por meio do Congresso Nacional, tem todo o
direito de afirmar que tais candidaturas são indesejáveis.
Da
mesma forma, os condenados por tribunais nos casos gravíssimos que a lei
menciona são afastados, pela lei, do acesso à candidatura, pouco importando se
são ou não culpados. A culpa – elemento subjetivo – haverá de interessar apenas
à Justiça Criminal. À Justiça Eleitoral, no momento de processar os pedidos de
registro de candidatura, importará apenas a verificação de dados de natureza
objetiva (se é alfabetizado, se atingiu a idade exigida, se não possui
condenações em certas hipóteses etc.).
Enquanto
a pena tem suas lentes voltadas para o passado (um fato que torna o responsável
passível de punição), a inelegibilidade tem sua vista projetada para o futuro:
interessa-lhe a proteção dos mandatos, dificultando o
seu acesso por parte de pessoas que ostentem indicadores objetivos de
que podem pô-los em risco.
É a
própria Constituição quem afirma essa particularidade: “Lei Complementar
estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim
de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do
mandato, considerada a vida pregressa do candidato (…)” (§ 9° do art. 14 da
CF).
Como
se vê, enquanto a sanção penal tem propósitos punitivos, a inelegibilidade tem
por meta o estabelecimento do perfil esperado dos candidatos. Essa é a
finalidade de todas as exigências fixadas na Lei da Ficha Limpa. Isso é assim
porque nos domínios eleitorais prevalece o princípio da proteção, afirmado
expressamente no citado § 9º do art. 14 da Constituição Federal.
Visto
que inelegibilidade não é pena, o que atrairia o princípio da presunção de
inocência, afasta-se desde logo a exigência do trânsito em julgado. Pode-se
afirmar, então, que inelegibilidade não é pena, é uma condição jurídica. Não há
nisso nada de novo. Essa já é a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal.
Veja-se,
a respeito, o precedente abaixo transcrito: “(…) inelegibilidade não constitui
pena. Destarte, é possível a aplicação da lei de inelegibilidade, Lei
Complementar n° 64, de 1990, a fatos ocorridos anteriormente à sua vigência”
(MS 22087-2, Rel. Min. Carlos Velloso. Diário da Justiça, 10/05/1996. Ementário
nº 1827-03).
Observe-se
que a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal afasta da
inelegibilidade o caráter de pena. Por razões lógicas, se reconhece sua aptidão
para alcançar fatos ocorridos no pretérito. É a própria Constituição quem o
declara: a inelegibilidade levará em conta a “vida pregressa” do candidato.
Digamos
que a norma até aqui não considerasse que as pessoas casadas com atuais
mandatários fossem inelegíveis. Se ela passasse a fazê-lo a partir de hoje,
seria razoável imaginar que os que se casaram antes da inovação legislativa
permaneceriam elegíveis? É a esse raciocínio absurdo que se chega ao adotar-se
a idéia de que a inelegibilidade não pode considerar fatos ocorridos no
passado.
Na
verdade, não ocorre na Lei da Ficha Limpa qualquer aplicação retroativa de
normas. A referida lei estipulou novas condições (causas de inelegibilidade),
que passarão a ser aplicadas a partir das eleições de 2012.
Se
até 2010 foram aplicadas as flácidas normas até então vigentes, a partir de
agora o rigor aumentará em razão da vontade manifestada pelo Congresso Nacional
sob a forma de lei complementar à Constituição.
Trata-se
de inovação que não altera fatos ocorridos no passado nem deles lança mão para
finalidades punitivas. Observam-se apenas os dados escolhidos pelo legislador como
relevantes para, cumprindo a missão constitucional, verificar os dados
objetivos que marcam a “vida pregressa dos candidatos”. Só haveria
retroatividade, nesse caso, se a nova lei pretendesse alterar o resultado de eleições
anteriores, realizadas sob o pálio de normas diversas. Nada disso ocorre neste
caso.
Gostaria
de rememorar um momento importante desse debate. Em 21 de setembro de 2010 foi
lançado manifesto em que se afirmava: “Nenhuma inelegibilidade se baseia na
idéia de culpa, mas na de proteção, segundo o declara a própria Constituição
Federal.
É
por isso que é aceita normalmente a inelegibilidade dos cônjuges, dos
analfabetos e dos que não se desincompatibilizaram de seus cargos e funções
dentro de certos prazos. Que ilícito praticaram? Por que estariam sendo
“punidos”? E o que dizer da inelegibilidade decorrente da rejeição de contas,
decidida por um órgão auxiliar do Legislativo, os Tribunais de Contas, que não
exercem função jurisdicional?
Tais
casos bastam para demonstrar que não estamos diante de medidas de caráter
punitivo, mas de regras de proteção fundadas em presunções constitucionalmente
admitidas e que têm por escopo a proteção das nossas instituições políticas.
Mandato é múnus público, não se configurando como bem individual. A
inelegibilidade não é pena, mas apenas critério de dispensa do sacrifício de
servir ao povo.
O
princípio do estado de inocência simplesmente não é aplicável às
inelegibilidades. Aqui vigora outro princípio constitucional: o da proteção. A
sociedade tem o direito político negativo de fixar critérios para a
elegibilidade, desde que o faça – tal como empreendido por meio da LC nº
135/2010 – por via legislativa complementar à Constituição. Ao fazê-lo, não
considera a lei que os condenados por tribunais sejam culpados de qualquer
coisa, apenas estabelecendo que suas candidaturas não são convenientes segundo
o crivo do legislador.”
Tal
documento foi subscrito por ninguém menos que Paulo Bonavides, Celso Antonio
Bandeira de Mello, Fabio Konder Comparato e Dalmo de Abreu Dallari. Além
destes, também o assinam os presidentes do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil (junto com onze ex-presidentes daquele conselho), da
Associação dos Magistrados Brasileiros, da Associação Nacional dos Membros do
Ministério Público, da Associação Nacional dos Procuradores da República e da
Associação dos Juízes Federais. Outros acadêmicos e autores de obras jurídicas
estavam na lista de responsáveis pela edição do manifesto.
Em
resumo, o Supremo Tribunal Federal precisa apenas seguir os seus próprios
precedentes para afirmar a plena compatibilidade da Lei da Ficha Limpa com a
Constituição da República. Se desejar seguir caminho inverso, terá que realizar
a tarefa de dizer que inelegibilidade é pena de natureza criminal, malferindo
assim os rudimentos da Teoria do Direito e a sua própria jurisprudência.
Márlon Reis é juiz de Direito no
Maranhão, membro do Comitê Nacional do Movimento de Combate à CorrupçãoEleitoral, um dos redatores da
minuta da Lei da Ficha Limpa, coordenador e professor em cursos de
pós-graduação, palestrante e conferencista. Twitter: @marlonreis
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