Che Guerava por Andy Warhol |
Eugênio Bucci
Em 1989, aos 26 anos, o cineasta Steven Soderbergh ficou famoso com
Sexo, mentiras e videotape. Duas décadas depois, lançou Che, um épico dividido
em duas partes, ou dois filmes em sequência: no primeiro, Che Guevara vira
guerrilheiro em Cuba; no segundo, ele vai para a Bolívia instalar um foco
revolucionário. No primeiro, Che sai consagrado, aos 30 anos. Do segundo, saiu
morto, carregado por um helicóptero.
A cena final do primeiro filme é inesquecível. Pode ser vista como um
trailer do pesadelo ético que a esquerda viveria na América Latina a partir de
então. O protagonista Che Guevara (Benicio del Toro) vai pela estrada, dentro
de um jipe sem capota, na direção de Havana. É janeiro de 1959. O ditador
Fulgencio Batista fugiu. Fidel Castro venceu. De repente, passa pelo jipe um
vistoso conversível, dirigido por um dos comandados de Che. No automóvel, moços
e moças festejam, cabelos ao vento. Che ordena que parem. “Que carro é este?”,
pergunta ao motorista. “Era de um francoatirador”, diz ele. O comandante se
enfurece. Manda que seu subordinado volte, devolva o carro e só depois vá para
Havana, a pé, se for preciso.
A mensagem do líder era simples e direta: a revolução não era um
movimento de ladrões.
Na biografia que John Lee Anderson escreveu sobre Guevara, há uma
passagem parecida. De novo, estamos às voltas com automóveis. Agora, Che é
ministro das Indústrias, no regime comunista de Havana. Certo dia, seu
vice-ministro, Orlando Borrego, aparece na repartição com um Jaguar esporte,
novinho, que encontrara numa fábrica. O chefe o interpela aos palavrões e o
obriga a devolver o carro. Borrego passaria os 12 anos seguintes dirigindo um
Chevy mais simples, sem opcionais. Outra vez, a mesma mensagem: a revolução não
admite ladrões.
Acontece que a História (com “H” maiúsculo, como alguns preferem) não é
heroica. Ela é uma piadista. Quando morreu pelas armas dos militares
bolivianos, Che estava magro e doente. E os ladrões proliferaram nas fileiras
de esquerda. Rechonchudos e felizes. Não roubaram apenas automóveis, mas
utopias. Transformaram sonhos dos camaradas em butim. Estão por aí, de terno,
gravata e dinheiro vivo dentro de casa. Nisso se resume o grande dilema
existencial e político das organizações de esquerda.
Ao se acovardar diante da corrupção ou, pior, ao julgar que podem se
extrair vantagens táticas da corrupção, um partido de esquerda abdica de
acreditar na igualdade de oportunidades. Logo, abdica de sua herança simbólica
e de nomes como Che Guevara. É bem verdade que Che se tornou um homem
embrutecido, violento, comandando execuções às centenas, sem processo justo. O
lendário guerrilheiro foi, a seu modo, um misto de verdade e de loucura (“tanta
violência, mas tanta ternura”). Fez sua guerra, sujou as mãos de sangue e topou
pagar o preço de sua escolha. O que importa, agora, é que ladrão ele não foi. E
isso importa porque não foi a selvageria da batalha que corrompeu a esquerda:
foi o roubo.
Passemos ao Brasil de 2011. Passemos para hoje. Estamos aí atordoados
com mais um escândalo, outra vez embaralhando ONGs, mas agora com militantes e
ex-militantes do PCdoB e autoridades do Ministério dos Esportes. Passarão
meses, talvez anos, até que saibamos quem de fato tem culpa no cartório, se é
que o tabelião e os cartorários não estavam no esquema. Desde já, porém,
sabemos que há milhões e milhões de reais em irregularidades, tudo em nome de
dar assistência a crianças carentes que não recebiam assistência nenhuma.
A corrupção virou a pior forma de barbárie de nossa democracia não
apenas porque mercadeja com o destino de crianças ou porque sacrifica vidas em
hospitais imundos e estradas abandonadas, mas principalmente por ter
transformado a política numa indústria complexa, cuja finalidade é a
apropriação da riqueza de todos para fins privados (e fins partidários são fins
privados). Na esquerda, a corrupção se qualifica: emprega métodos bolcheviques
e se justifica sob licenças ideológicas que enaltecem o crime comum como se ele
fosse a própria trilha de libertação dos oprimidos. É uma corrupção delirante,
que se julga uma nova modalidade de guerrilha contra o capital, mas que, no
fundo, presta serviços ao que há de pior no capital.
Comunistas e socialistas, quando corruptos, roubam enfim a razão pela
qual morreram todos os guerrilheiros. Traindo seus mortos, traindo os
desaparecidos, o corrupto de esquerda se sente vitorioso. Acha que pode passear
de conversível sem ser incomodado.
Eugênio Bucci é jornalista (artigo publicado na revista Época em 24/10/2011)
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